junho 21, 2005

Uma crónica no Voz das Beiras



Indiferença

Os projectores que iluminam as arcadas da Praça do Comércio ferem-me a vista. Só abrando o ritmo longe do seu alcance, para poder observar o desenrolar dos preparativos para a passagem do ano. Um café em dias especiais como os que se vão seguir, custa um euro e meio numa tenda qualquer disfarçada de esplanada da moda.
Mas em noites vulgares, como quando por aqui passo, não me interessa porque está fresco e nem sequer bebo café. Faltam poucos minutos para o barco partir. Tonalidades coloridas invadem o património da cidade. A todo momento, e porque é Natal, espero que surja um daqueles anúncios a créditos, casas, electrodomésticos. Revivo saudosista o encerramento do "Lisboa 94, Capital Europeia da Cultura", em que misturada com a mole humana que invadiu o Terreiro do Paço, assisti ao mais belo fogo de artifício que permanece naquele conceito um pouco gasto que dizem ser o nosso imaginário. As festas, fossem quais fossem, eram mais a sério. Não sabiam tanto a atordoamento mental. Estava-se ali e pronto. Não se cogitava se o metro devia ou não esventrar a cidade, se esta estava ou não esventrada, ou se os barcos que ali atracavam eram carcaças envelhecidas.
Os barcos. Queixam-se agora as gentes que não se pode sentir o vento ao vivo. Mas o progresso tem um preço. E há quem prefira uma viagem curta e confortável, a sentir o vento, porque às onze da noite já se está demasiado esgotado para pensar em mais alguma coisa que não seja metro, autocarro, metro, barco, autocarro, casa. Abram-se as janelas depois em casa e sinta-se o vento e a noite. E dê-se a volta ao mundo durante algumas horas de sono que adiam o dia seguinte. Depois recomeçará tudo novamente. Sabido que é, que os amanhãs cíclicos são a mais pura das verdades. Agora. Que antes não era nada connosco. Não fazia parte do passado ou do presente, e o futuro era muito lá ao fundo.
Víamos as rugas apenas nos outros. Mas a realidade é que não víamos nada. Nunca era nada connosco. E a batalha para nós só começou agora. A batalha que se trava por mais um amanhã, só mais um, para aumentar uns centímetros ao ecrã de televisão. Para aumentar uns metros à sala e já agora mais uma casa de banho para as visitas poderem comentar que não gostam dos azulejos. Não sobra tempo, não sobra tempo para nada.

"Lá no emprego não me vão deixar faltar mais um dia, mãezinha, por favor fica-me com a menina. Sim? Juro que para a semana o Luís te dá um jeito ao esquentador. Desculpa vir de corrida mas só vim buscar a miúda. Não deixei nada preparado para o jantar e a roupa está pendurada a apanhar chuva... - Caramba, mãe? Ainda por cima o meu quarto está na mesma, mãe! Não podias ter deitado fora o meu quarto para não sentir esta vontade estúpida de me deixar ficar? - Os pais do Luís fizeram uma salita no quarto dele, para o pai ver a bola à vontade. Não gostavas de ter uma televisão só para ti? Se o subsídio não se for todo embora, juro que te ofereço uma, para poderes ver a novela. Olha... Ficas com o meu quarto para a tua televisão. Faz melhor ainda, muda de quarto! Beijos mãe, até amanhã!"

A luz intensíssima dos projectores na Praça do Comércio denuncia restos de seres humanos caídos pelo chão, por entre as arcadas. Sim, restos. Sobras da sociedade, envolvidas em cobertores velhos que já não cheiram a nada, de tanto que cheiram a tudo. Como lhes é possível dormir? Adormecem de cansaço, apatia? A mim, as luzes cegar-me-iam.
Observo-os de longe, deste lado do microscópio. Vejo neles a letargia de um país que já mal se reflecte no brilho dos olhares. Fujo. Mas no caminho que me leva ao terminal dos barcos mora o "meu" sem-abrigo. Já só faço conjecturas vendo-o ali adormecido entre caixotes de papelão. Que mais fará durante o dia para além de dar milho aos pombos que Lisboa preferia não ter? Que fará ele para além de arrastar os pertences numa velha saca de compras com rodas?
Vi-o parado, um dia destes, no meio de numa serpentina interminável de gente à espera de mais um transporte, a ler a Visão. Será que ele já alguma vez a leu numa esplanada da praia de Carcavelos? Ou as perguntas que faço são apenas o medo que temos da dar connosco a ler uma revista qualquer, num outro dia qualquer, com a vida enfiada às pressas em sacos? Quero cerrar os olhos. Não desejo soçobrar entre os destroços dos que dormem ao relento. E no entanto é assim que sabemos que ainda não fomos totalmente mastigados pela engrenagem. Ainda resta o medo que só se dissolve quando atingimos a mais profunda indiferença.

Raquel Vasconcelos

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*Possível de ler no Voz das Beiras, um jornal da cidade de Viseu,
ou on-line em
Voz das beiras , na secção "Opinião".

16 comentários:

JMTeles da Silva disse...

Belíssima crónica, mesmo sem rato.
De onde se prova que os camundongos não são indispensáveis.
Bravo! Beijocas.

gato_escaldado disse...

gostei muito. quotidiano sem adjectivos coloridos. mas com ideias mto expressivas. fica a martelar: "o futuro era lá mto ao fundo". parabéns à cronista e ao jornal "Voz das Beiras". beijos

Eva Lima disse...

Vou eu, depressa, depressa, comprar "A Voz das Beiras" e,afinal, o artigo está aqui!!
LOLOLOL


Gostei
Bewijinho

bertus disse...

...gostei muito desta tua deambulação pela capital, de cãmara e micro em punho. As pessoas são "essas" e estão no "lugar certo".

Quero ouvir hoje à noite o Rodrigo Guedes de carvalho dizer «foi a Raquel V. em directo do terreiro do Paço.».

Parabéns!

Mitsou disse...

Parabéns!!!!!! Ó pra mim toda contente! Desculpa só vir agora, mas amanhã saberás porquê. Beijinhos muitos e orgulhosos, mana mais nova :)

bertus disse...

..."mana mais nova"?!

São mesmo?

Raquel Vasconcelos disse...

bertuuuuuus
:p mantenho-me eu caladinha, a apreciar a vizinhança, ainda por cima à espera de um mouse que nunca mais chega...,
mas não, tinha que vir um bertus cusco! LOL

Mana "mais nova" é uma forma carinhosa da Mi me tratar, que muito me honra e de que gosto imenso, não só porque ela é uma pessoa muito especial e de quem muito gosto, como também porque é importante sabermos que nos podem considerar assim :)

CUSCO
:))

mdm disse...

Bem!!!!
Parabéns Raquel!
Beijinhos

Daniel Aladiah disse...

Querida Raquel
Temos sempre medo da diferença, o que explica racismos, xenofofias e, até, guerras. Mas concordo contigo, há que ter medo da indiferença, pois ela anestesia-nos para a realidade, mas não deixa de ser um mecanismo de defesa para podermos aguentar o mundo em que vivemos.
Um beijo
Daniel

Unknown disse...

gostei da tua cronoca , muito..assustei-me com a entrada...mas depois fui comendo as cerejas.

Anónimo disse...

quando a dura realidade nos irrompe pela nossa vidinha adentro... custa.
Obrigada, por com este teu texto nos alertares para problemas que muitas vezes nos passam, injustamente, ao lado... *

agua_quente disse...

Muito bom o texto, Raquel. Não te conhecia estes dotes de cronista do quotidiano. És um poço de agradáveis surpresas.

Beijos

bertus disse...

...prontos! já percebi que "este" vai cá ficar uns dias...
Bom fim de semana!!!

João Mãos de Tesoura disse...

Primeiro o sucesso da escrita, agora o reconhecimento na fama!
Parabéns

Raquel Vasconcelos disse...

Obrigada a Todos

Anónimo disse...

Sim, provavelmente por isso e