A noite depressa imitou uma noite igual a qualquer outra. Todos os gatos passaram a ser pardos, surgindo silenciosamente nas vielas. Raros miados trespassam a escuridão morrendo suavemente nas sombras ainda mais negras dos becos.
As passadas cadenciadas não diferem do bater de um coração, e apenas o empedrado da calçada ressoa sob as solas gastas. A sombra, geminação incessante do ser, avança de cabeça pendente a destoar do andar aristocrata de quem atravessa o salão nobre de um palacete.
Caminhava, há mais de uma hora, nas trevas profundas, procurando confundir-se com as paredes ressequidas pela fuligem do tempo. Pressentia os interiores dos prédios, vencidos pelo abandono. Abrandou, tacteando uma das paredes dos primórdios da cidade, como se com a sua mão conseguisse auscultar o íntimo decadente dos quartos e dos que os habitam, ignorados e transformados há muito nos "sem abrigo com tecto". Adivinha o medo disfarçado de vazio dos que já viveram. E pensa nos que se esconderam há pouco em vãos de escada e recantos abandonados, fugindo do frio e da chuva que escorre sem medo pela face dos que nesse dia beberam demais e vomitaram as entranhas a coberto de uma juventude cíclica ou de um vício sem retorno. E a desculpa fugaz de hoje foi o fogo de artifício que assumiu contornos de gigante, transfigurando a noite durante alguns minutos marginais, roubados à raiva dos que já sabem demasiado.
Caminha ainda enfeitiçado pelo fogo que o cegou com a brevidade de um regresso à vida, caminha perturbado, agarrando-se às batidas do coração e às sombras, imbuído de sangue e ânsia de mais fogo... Uma ânsia forjada quando o céu explodiu e ele olhou em redor e todos os seres lhe surgiram como cadáveres. O pavor invadiu-lhe o íntimo e os olhos transpareceram todo o terror que um ser humano é capaz de manifestar até por fim o cérebro sucumbir e desmaiar.
O ruído, os risos e as atenções aprisionadas pelo fogo, roubaram-lhe a singular oportunidade de renascer reflectido no olhar real de uma pessoa, fosse ela quem fosse. E quando se permitiram aperceber-se dele, caído, já recuperara os sentidos. Ergueu-se amedrontado enquanto o fogo continuava a incendiar os cadáveres que compassivos especulavam agora sobre ele, habitualmente invisível. Ergueu-se e afastou-se.
O fogo de artifício sempre fora um prestidigitador que o encarcerava por minutos na sua meninice, esquecido de tudo, e era a única razão para ter percorrido quilómetros a pé. Nessa noite esquecera a fome e a carrinha do voluntariado para fazer de conta que retornaria um dia ao presente, indo atrás do passado contido nuns minutos de ruído e cor. Mas a realidade desta vez atraiçoara-o e quando empurrou o portão do velho pátio, abandonado no tempo, sabia exactamente porque ali habitava.
Por Raquel Vasconcelos
in Jornal O Progresso de Gondomar
Caminhava, há mais de uma hora, nas trevas profundas, procurando confundir-se com as paredes ressequidas pela fuligem do tempo. Pressentia os interiores dos prédios, vencidos pelo abandono. Abrandou, tacteando uma das paredes dos primórdios da cidade, como se com a sua mão conseguisse auscultar o íntimo decadente dos quartos e dos que os habitam, ignorados e transformados há muito nos "sem abrigo com tecto". Adivinha o medo disfarçado de vazio dos que já viveram. E pensa nos que se esconderam há pouco em vãos de escada e recantos abandonados, fugindo do frio e da chuva que escorre sem medo pela face dos que nesse dia beberam demais e vomitaram as entranhas a coberto de uma juventude cíclica ou de um vício sem retorno. E a desculpa fugaz de hoje foi o fogo de artifício que assumiu contornos de gigante, transfigurando a noite durante alguns minutos marginais, roubados à raiva dos que já sabem demasiado.
Caminha ainda enfeitiçado pelo fogo que o cegou com a brevidade de um regresso à vida, caminha perturbado, agarrando-se às batidas do coração e às sombras, imbuído de sangue e ânsia de mais fogo... Uma ânsia forjada quando o céu explodiu e ele olhou em redor e todos os seres lhe surgiram como cadáveres. O pavor invadiu-lhe o íntimo e os olhos transpareceram todo o terror que um ser humano é capaz de manifestar até por fim o cérebro sucumbir e desmaiar.
O ruído, os risos e as atenções aprisionadas pelo fogo, roubaram-lhe a singular oportunidade de renascer reflectido no olhar real de uma pessoa, fosse ela quem fosse. E quando se permitiram aperceber-se dele, caído, já recuperara os sentidos. Ergueu-se amedrontado enquanto o fogo continuava a incendiar os cadáveres que compassivos especulavam agora sobre ele, habitualmente invisível. Ergueu-se e afastou-se.
O fogo de artifício sempre fora um prestidigitador que o encarcerava por minutos na sua meninice, esquecido de tudo, e era a única razão para ter percorrido quilómetros a pé. Nessa noite esquecera a fome e a carrinha do voluntariado para fazer de conta que retornaria um dia ao presente, indo atrás do passado contido nuns minutos de ruído e cor. Mas a realidade desta vez atraiçoara-o e quando empurrou o portão do velho pátio, abandonado no tempo, sabia exactamente porque ali habitava.
Por Raquel Vasconcelos
in Jornal O Progresso de Gondomar
passam e "sentem"...
Bom ano de 2006!
27 comentários:
Em alturas destas,a euforia e alegria de uns ,contrasta dolorosamente com o vazio e sofrimento de outros.Que o Novo Ano seja no mínimo mais humano para aqueles que sofrem em silêncio,esquecidos pelas multidões!
Parabéns mais uma vez Raquel!
bjokas grandes ":o)
um feliz ainda 2005 e um 2006 de acordo com os teus anseios...gosto de te ler..um abraço
Falta-me o tempo que queria para dizer alguma coisinha de jeito!
Olha, um beijinho, que 2006 exceda em muito 2005, com muita Paz, muito Amor, mais Humanidade! O resto, vem por acréscimo!
Beijinhos!
Um 2006 recheado de alegrias e sucessos, querida Raquel.
Beijinhos doces e um sorriso de esperança...pois claro! :)
Um momento de ilusão apenas. O correr atrás do efémero. Afinal como a nossa vida. Que só vale pelo curta que é. Feita de momentos apenas. Depois do brilho segue a monotonia. Fôramos nós infinitos no tempo e seriamos infinitamente monótonos.
Sem a nostalgia de querer agarrar o fugidio dum curto momento e vive-lo com o brilho das estrelas no olhar em breve ilusão de eternidade.
tu... e a vida.
e a escrita. e a vida...
Boas Entradas Raquel *
Que 2006 te traga tudo aquilo que já deixaste de ser capaz de pedir...
Mereces*
Beijinho *
olá, :)
óptimo Ano Novo com tudo de bom, mesmo tudo!Raquel,
bjs
Apiur
2 0 0 6 v a i s e r u m g r a n d e n u m e r o s e m g r a n d e s " h o l e s " . p a r a t i u m g r a n d e e d e l i c i o s o a n o c h e i o d e c o i s a s b o a s .
Raquel
Este teu conto é bom, muitíssimo bom. É triste, mas terminas o ano com o que de melhor já li nos blogues.
Quando queres és genial minha querida amiga.
Beijo
Quanta realidade escondida nos olhares de quem vive, vivendo apenas.
Neste texto, tentas ver o mundo, e um momento em especial, pelos olhos de alguém que não vive directamente esse momento especial... mas que no entanto refugia-se nesse efémero momento procurando a sua fugaz lembrança de paz e felicidade vivida na meninice.
Adorei o contexto e a objectividade da narração.
Quanto ao momento especial que se aproxima... os desejos do costume!
Para não variar... torna-se fastidioso constactar depois que pouco muda ou mudará, apesar de todas as felicitações. Portanto desejo-te apenas isto: Vive em pleno!.
E se possível, melhora o que não foi totalmente positivo... em 2005.
Bjinho
Querida Raquel
Tu não escreves somente... tu encantas com a tua maestria poética, que só alguém de uma rara sensibilidade é capaz de nos proporcionar.
Tudo de bom em 2006!
Um beijo
Daniel
A Vida que passa ao lado de nós, por vezes, iluminada, outras vezes em desmaios de fragrâncias ilusórias...
Sabes como gosto de te ler. A tua sensibilidade e a tua força e forma de expressão são únicas e inatingíveis?
Um grande abraço carinhoso e uma serena e feliz entrada em 2006 ;)
Olá Raquel,
No meu balanço de 2005 ter conhecido este teu cantinho foi um dos pontos altos... não há dúvida que "As Palavras dizem muito mais..." quando escritas e conjugadas como tu o fazes.
Como estou quase de "abalada" até dia 2, venho já desejar-te uma passagem de ano em cheio e que 2006 te traga, a ti e a todos os que vivem no teu coração, muita saúdinha, prosperidade e amor.
Milhões de beijokinhas festivas e amigas
um feliz 2006, cheio de sorrisos e coisas belas
jocas maradas
Que felcidade R.! Que desejos tão sentidos e bons!
Também para ti,
e para todos aqui presentes,
e para outros que não estão,
e para a Zazie, a Margarete, o Luís e outros que não me lembro do nome,
e para a Ana
Votos de:
muito amor, saúde e tranquilidade, com beijinhos desta outra '-r'
Desejo um ano novo cheio de alegrias e muita paz e amor.
Desejo que proporcione a realização de sonhos e objectivos
Sempre acompanhados de uma boa disposição para aproveitar todos os momentos !
!!! FELIZ 2006 !!!
Mil Bjks da Matilde, Ligia e Miguel Brito
... feliz ano de 2006 ...
LM
Olá Raquel, que 2006 seja melhor que 2005 com muita paz, saúde e felicidades.
Um beijo e Feliz Ano Novo!
Bela vida cheia de palavras para 2006. Abraço.
Um muito bom 2006, cheio de boas novidades. :)
O teu artigo....sem +comentários: De grande beleza e sensibilidade.
peço-te umfavorenvias-me ocódigo do banner k fizeste sobre a pedofilia? Lá no blog diz k está po baixo do banner mas,...nada, não me aparece.
Obrigada. bjocas doces
Olá, só passando depressa! :)
Raquel
Avaliar o que escreveu não faz sentido.
Criar uma crónica tão verdadeira, questiona-me sobre a sombra que projecto.
O abandono que mora ao lado, nos becos escuros, vazios da vida que não se alcança, é sentido nas suas palavras.
Obrigado pelos desejos para 2006
Que seja bom, e sobretudo melhor para todos.
Ora, viva! Desculpa o incómodo, mas hás-de ver se o meu desafio no Sete Mares te interessa.
Um abraço.
Neste minha primeira visita em 2006, desejo o melhor para ti!
Beijo da Lina/Mar Revolto
Visita rotineira! :D
Vi o teu comentário ao meu grito "felino"! Ao percorrer o teu blog, além da qualidade que encontro, vejo a afinidade com os gatos. Já agora se quiseres espreitar o meu chama-se FANTASIAS, e tem o endereço teresadavid.blogspot.com
Parabéns por estares viva neste país de moribundos.
Teresa David
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