novembro 25, 2005

Sentou-se. Seriam dez minutos ou três horas de espera e a paciência não era uma das suas virtudes. Olhou em redor e fechou os olhos por segundos. Reabriu-os e colocou os óculos escuros. Assim dificilmente perceberiam que por vezes não os conseguia encarar. Só não podia tapar os ouvidos com as mãos, como as crianças, mas as conversas casuais eram semelhantes a tantas que já ouvira antes que as remeteu na para ruído de fundo. O ser humano disfarça quase tudo se não estiver perante perscrutadores de almas e os seus companheiros de espera estavam demasiado preocupados com as suas maleitas - ou com a falta de noção destas - para se darem ao trabalho de reparar nela e na sua análise visual intermitente.

A sala era tremendamente feia, os sorrisos amorfos, os esgares, a tristeza. As roupagens faciais apareciam-lhe sem perfil mesmo naqueles que aparentavam uma surpreendente quietude conformada. Claro que ninguém tinha culpa que ela sentisse que tinha penetrado subitamente num filme de Fellini, e como após alguns metros de película já todos dançamos ao som do mesmo compasso e nada nos parece estranho, esperou que esse momento surgisse. Agarrou numa das revistas que ainda sobrevivia na mesa de centro da sala. Folheava-a e "lia" as imagens, os filmes, os actores de novela, os modelos dos cremes de corpo. Todos aqueles eventos belos que a protegiam da feiura que a rodeava.

E depois - do lado de fora do "filme de Fellini" - havia uma campanha publicitária para conceber. A oportunidade de brilhar pela primeira vez. Aproveitando a metáfora mesmo à sua frente, passar de feia a bela. A campanha envolvia um banco, as suas promessas, percentagens e múltiplas aptidões amigáveis para com o cliente. A mesma constante, nada de novo, apenas apresentada num formato diferente. Ainda existiriam outros moldes para dizer que "ali sim"? Aparentemente a resposta era afirmativa. Conhecia todos os desejos do cliente através de um briefing bastante completo que também envolvia diversas estatísticas e percentagens, estas menos amigáveis e mais calculistas.

Arre, pensou, logo hoje tinha que aqui vir parar. O seu estatuto de estagiária na agência ainda não lhe permitia fugir ao enquadramento desengraçado que lhe entrava retina adentro. E a campanha, para atrair a confiança de outros que não aqueles, a martelar-lhe na cabeça. Tinha a convicção de que estas pessoas feias e tantas delas enrugadas, não só não veriam a campanha, como não pertenciam às estatísticas do banco. Pertenciam, talvez, a estatísticas para folhetos de supermercados de produtos de baixo preço, de qualidade duvidosa. Ao menos isso. Existiam cérebros, nesse exacto instante a conceber campanhas para aquelas pessoas tristes e feias.

Queria incluir nem que fosse uma ínfima percentagem de pessoas, daquela sala de espera, na campanha feliz do banco feliz e amigável. Mas as meias horas passavam-se e sentia-se presa a estas. À realidade. E ao fim de três horas já tudo lhe parecia uma fantochada, as pessoas belas e felizes, o banco, o briefing. Esvaziou a mente. Reformulou mais uma vez a malfadada campanha que continuou a ser para gente sorridente. Não passava de uma publicitária em início de carreira e não escolhera a profissão para mudar o mundo.



Por Raquel Vasconcelos
in Jornal
O Progresso de Gondomar

23 comentários:

Conceição Paulino disse...

as salas de espera...O pais é, todo ele uma imensa sala de espera...retrata-la mtº bem. Bjs de luz e paz cheios de :)

Nilson Barcelli disse...

O teu texto é triste, mas retrata com excelência os ambientes lúgrubes de salas de espera de consultórios médicos, da caixa o dos outros, e, ao mesmo tempo, fazes um teste à campanha publicitária do banco.
Pelo meio a alternativa de figurarem como público alvo de campanhas rasteiras, de supermercado.
E, desgraçadamente, concluis que o publicitário só tem que fazer o que lhe pedem, isto, é, vender mais, nem que seja gato por lebre.
Mas ninguém está aqui para mudar o mudo, muito menos o teu personagem...
Adorei o teu texto. Beijinhos.

Daniel Aladiah disse...

Querida Ana
Na sala de espera... à espera de salvar o mundo, até cairmos em nós, verificando que ninguém nos chama, que ninguém espera por nós, olhando à volta com uma interrogação: que faço aqui? o mundo não se salva e esqueci-me de me salvar a mim...
Um beijo
Daniel

mfc disse...

O tédio que nos invade numa situação dessas é perfeitamente insuportável... de pois os sorrisinhos da praxe e os minutos, esses malvados, não saltam no mostrador do relógio...
Ufffff.... entediantemente insuportável!
O texto transporta-nos na perfeição para essa atmosfera.

fotArte disse...

Mas que forma tão engraçada de abordar este assunto e que Dom formidável que tens!

agua_quente disse...

Terrível, a quase desumanização dessas salas de espera em que todas as mazelas se expõem e esperam, esperam...
Claro que depois de umas horas disso ninguém quer salvar o mundo, quando muito "salvar-se" dali...
Beijos

Su disse...

gostei de ler-te nesta espera, que se desespera, que se disfarça, que se detesta
jocas maradas

Que Bem Cheira A Maresia disse...

As salas de espera são sempre um horror e temos que passar tantas vezes por elas que cada vez mais desesperam.Gostei muito da forma como a retrataste.

Bom fim de semana

Beijo da Lina/Mar Revolto

Alexandre de Sousa disse...

Apesar de, nas nossas vidas existirem milhões de salas de espera, razão mais do suficiente para servirem de tema, um bom tema. Como sempre

Anónimo disse...

Afinal não é a nossa vida desde que nascemos, uma imensa sala de espera repleta de expectativas e anseios.

Anónimo disse...

Numa sala de espera conseguiu bem este artigo englobar situações abrangentes do nosso viver, das nossas expectativas e anseios. Beijinhos.

Thiago Forrest Gump disse...

Só não pode se encaixar no ditado: "no início é assim mesmo, depois piora!"

Dulce Gabriel disse...

E o pior de tudo é que em Portugal,acontece como diz a canção;longa se tarna a espera.

Mitsou disse...

Mais um texto de grande intensidade, mana.
São salas de espera, muitas vezes salas de espera da vida para quem quer partilhar solidões e não somente males do corpo. São esperas que se tornaram uma rotina. São hábitos quase diários, uma dependência criada pela vontade de ainda esperar alguma coisa...

Um beijinho doce e parabéns pela belíssima crónica, querida Raquel.

Unknown disse...

Um texto que retrata a rotina, os habitos diários de um humano sitadino. Beijinhos

Que Bem Cheira A Maresia disse...

Obrigada pela tua visita, foi um prazer sentir-te por lá :)

Beijo da Lina/Mar Revolto

Jorge Oliveira disse...

Texto excelente! Gostei.
Mas com pequenos gestos podemos mudar pequenas coisas.
Continuação de boas campanhas!
;)

Conceição Paulino disse...

bom feriado, amiga :)Bj de luz e paz

Anónimo disse...

Nada já me surpreende na forma despregada que nos dás a ler as tuas magníficas crónicas. Estou sempre atento nesta sala de espera esperando por mais um texto teu. Embora nem sempre comente, mas saboreio sempre as tuas palavras com satisfação porque és uma das pessoas que por aqui andam de minha eleição.

Bom feriado, um beijo!

Ps:- ainda não me esqueci do teu mail, mas o tempo vai me faltando, assim que disponibilizar de um extra satisfarei a explicação.

Nilson Barcelli disse...

Então ainda não tiraste o pisca-pisca?
Beijinhos...

agua_quente disse...

Deixo-te um beijo, Raquel, e desejo de bom feriado.

Nilson Barcelli disse...

Feriado = eclipse total
E eu a desatar os nós... tu sabes kuais.
Beijinhos

gato_escaldado disse...

belo texto. pois claro. muito bem escrito. apreciei sobretudo a latente ironia. para mudar o mundo. rsss. beijos