julho 05, 2005

Secção Opinão, Voz das Beiras





Des (Humanidades)

Atropelada. Não me ergo. Deixei de saber erguer-me. Belisco-me - vi demasiados filme - afinal as pessoas de carne e osso também se beliscam para perceber se a realidade existe. Afinal não é um sonho, é provavelmente um pesadelo. Muitas pessoas, todos desejam ver-me. A fama em forma de punhaladas no peito. Respiro mal. Esfuma-se tudo, as caras, os sons, a curiosidade.

"Nome? morada?" As ruas de Lisboa... Não sabia que podiam doer tanto. "Nome, morada... idade?" Porque é que ele não se cala? E as ruas de Lisboa doem, moem. Deixe-me ficar calada. Só um bocadinho.

Gente, demasiada gente, uma multidão de camas que não são camas. Demasiada gente. Custa-me tanto respirar. Não vejo sangue em mim. Não vão dar por mim. Mas reparam porque alguém entrou e grita, "Ela pode ter hemorragias internas, doutor!" Tanta gente, tantas macas. "É giro não é? O médico?" Dói tudo. Um sorriso por se ouvir algo que não é habitual nela. "Sim mãe, é giro", imagino que lhe respondo. Salvou-me a vida. Eram demasiadas macas, demasiada gente. O sangue alastrava, invisível...


A roupa desaparece. Cortam-na. Não faz mal. Já não vejo nada. "Mude-se para aqui". Deve ser para outra maca. Uma voz feminina, metálica, ordena-me o impossível. Não consigo vê-la, apenas a oiço. Não consigo. Não faz mal. Paciência. Começam os tubos. Não os sinto entrar. "Vai ser operada" Ainda bem! A anestesia adormece tudo.

Depois começa a verdadeira realidade. O após. A dependência dos outros. Sangue. Soros. Tubos para tudo. Até para vomitarmos. Despem-nos. Lavam-nos. As arrastadeiras. A urina nos lençóis, mudados conforme a disponibilidade ou as emoções do turno de enfermagem. Alguns desses seres humanos - rio-me - escolheram uma profissão que nunca se lhes moldará à carne. A urina nos lençóis torna-se gelada e finalmente as lágrimas escorrem. Dói tudo, está tudo revolvido, não se bebe, não se come. Os tubos saram-nos. Mas não mudam lençóis. E cede-se.

Tudo gira em torno de ritmos certos. À hora certa, as injecções certas, os medicamentos correctos. As visitas da equipa médica. A nudez sem aviso. Retiram-me os lençóis como se não estivesse ali. Já não faz mal. O irreal comanda. Até o cheiro que vem da cozinha e me dá náuseas parece pertencer a um outro mundo. As conversas tardias sentem-se. Pesadelos. Gemidos. Somos coisas. Coisas que pedem um auxílio excessivas vezes negado. Alguém ao nosso lado pergunta "Queres ajuda?". São os seres deitados ao nosso lado, em camas iguais à nossa que se entre ajudam. Um gesto, um sorriso. Uma anedota. Não há doutoras ou prostitutas. Jovens ou velhas. É uma amálgama de seres que precisam desesperadamente de se sentir gente.

Os tubos vão desaparecendo. Uma a um. Já há bolachas na gaveta. Mas abdico delas. Pequenas baratas invadiram-nas primeiro. "Uma barata no tecto em cima da tua cama! Aí vai ela... Espera! Vai bater com os cornos!". Um esgar, é impossível não ter vontade de rir. Hoje as baratas. Ontem o pequeno rato dançarino. Comenta-se que durante a noite teria entrado na cama de alguém. Usou-se insecticida para "desratizar a situação". Como não há nada de novo e a rotina é sempre a mesma e o rato torna-se-me numa mini atracção neste circo de loucos. Parece um hamster. "Isto é que são ratos?", penso, "Olá, pequeno rato".

Numa cama morre alguém. Desinfecta-se tudo. A vida - a dos outros - segue em frente. Lá muito ao fundo, e é tão perto e tão longe, alguém que se mantém sempre mudo fixa uma arrastadeira, negando-a. Afinal enganou-se. Um erro fatal quando se é uma coisa. A idade avançada tolheu-lhe o pedido rápido. "Afinal não queria... É mesmo porca!", conspurca-nos a todas a voz de uma das "nazis".

Catalogara-as a todas. Assim que as dores são aceitáveis, o vazio que decorre entre visitas dá-nos um poder de observação extremamente aguçado. Até a médica estagiária fora catalogada. Miúda acanhada perante nós. Porque as temidas eram as enfermeiras. Observavam-se subornos - pequenos presentinhos - de mulheres que tentavam obter "melhor" tratamento. Catalogara os turnos, as mulheres de bata branca. Algumas, poucas, eram pessoas a sério. E quando se está à mercê de todos, uma pessoa a sério é imprescindível. Outras, secas mas eficazes. Uma ou outra... real. Aquela ali, aquela... era sempre alegre. E as "nazis"... neuróticas que achavam que um dia já tinham estado também numa cama a estagiar para coisa, e isso lhes dava o poder de nada sentirem. Talvez por isso... nunca tenha esquecido os cuidados intensivos. Estava-se entre a vida e a morte mas havia por lá gente a sério. Seres humanos, escrito a maiúsculas.

... Dezembro de 1995. Lisboa.


Urgências. Porque é urgente. Outro hospital. Outras paredes sujas de apatia. Um silêncio diferente porque se está na periferia. A letargia contagia-se a todos os seres que observo. "Tome..." - bebo o líquido amargo - "Já está? Boa tarde...". Não há um olhar.




*Secção Opinião, no Voz das Beiras, um jornal
da cidade de Viseu, ou on-line em
Voz das beiras .

28 comentários:

Daniel Aladiah disse...

Querida Ana Raquel
Lindo!!! urgências, precisam-se para as urgências,para as efermarias, para as consultas, para os cérebros dos robots que tratam de nós! Socorro!...
Um beijo
Daniel

Anónimo disse...

É aqui que o critério "nota de entrada na fac." se torna mais absurdo.
Tipo Economista cleptomaníaco em banco ou elefante em loja de cristais

Anna^ disse...

Já tive algumas passagens por hospitais...e não podia estar mais de acordo com o que li aqui.
Gostei dessa realidade vista pelos teus olhos.
Humanizar mais estes serviços...é preciso!

Bjokas e fica bem ":o)

Indibiduo disse...

Uma vez mais se nota uma falta de humanismos, de atenção e para quem precisa. Por vezes basta um sorriso ou duas palavras para atenuar a dor...

E tu que comentas-te o meu post há umas semanas, bem sabes disso...

Raquel Vasconcelos disse...

Anonymous
Sempre ouvi a velha história de que enfermeiros são médicos falhados, de que queriam ir para medicina e não puderam...
Algo me diz, agora, que é mais que isso...

Tão só, um Pai disse...

Parabéns. Um dia devias publicar o livro dos teus contos. Gostei muito. Também estive internado, seis anos antes de ti. Nem gosto de me lembrar. Como se pode perceber do texto, a humanidade das pessoas preciso de tempo, para ser humana.
Beijinho.

Margarida Atheling disse...

Fiquei arrepiada!
Tenho pavor de hospitais!Tenho mais medo deles do que da dor ou de qualquer outra coisa!

Beijinhos!

JMTeles da Silva disse...

Belíssimo texto! Parabéns.
Bjokas
PS: Mas...onde andas tu rapariga?
A dares conta de algum (logo)tipo?;) hehehehehe...

Raquel Vasconcelos disse...

Lá se vai a moral e os bons costumes... :P Lá vamos nós! Sim pah... do tipo que é mais um logo :P

bertus disse...

...espero não ter estado no mesmo hospital que tu...coincidências do caraças!
O meu atropelamento foi na Barata Salgueiro e como tu falas na tua crónica em baratas...mas não, não pode ser. Que as tuas baratas tinham cornos e as minhas, que eu me lembre, não.
Mas eu lembro-me lá de alguma coisa depois do desastre? Andei muito tempo esquisito da cabeça...e nunca me curei. Juro. Palavra de Bertus, grunhido de porquinho...da India.
Descreveste tão bem o "sítio hospitalar" que até parecia que cheirava a clorofórmio enquanto lia, xiça!

bertus disse...

...e ainda te visitou?!
Sortuda! ...que é assim que se iniciam os grandes romances de amor.
Já estou a ver o título para outro post: "Atropelada casa com atropelador(?!)"

Raquel Vasconcelos disse...

LOLOLOL
O homem era casadíssimo!


Ia fazer o papel de Judas nesse natal numa peça! Deve ter sido o natal da vida dele...

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Sabem porque me lembro de N coisas do momento em si?
Pq as pessoas me viraram...(pois... aterrei de nariz para o chão... )... me massajaram o pescoço... me deram a mãozinha... a parte de conversarem também gostei... e de me dizerem que era só levantar-me LOL

Claro q fui acordando e desacordando... PUDERA!

Ou seja... além do baço, que já tinha ido para as "cucuias"...

...posso agradecer a essas mesmas pessoas... ainda ter tido as costelas - que se quebraram - enfiadas pela pleura (área do pulmão) adentro!

Ou seja, graças a esses amores que pelos vistos não sabiam que NÃO SE TOCA NUM ACIDENTADO, mais uma operação e mais um tubo!

Å®t Øf £övë disse...

Ana,
Gostei muito de ler este texto.
É muito duro,mas infelizmente é bem real.
Talvez por isso mesmo é que seja duro.
Bjs.

Eva Lima disse...

Gostei mto de ler isto!
Já passei por vários hospitais, inclusive no estrangeiro.
A última vez num hospital novo, moderno, limpo. Infelizmente, o atendimento era à moda antiga. Como muito bem o descreves aqui.
Bjinhos

p.s. que boa escrevinhadora Viseu conseguiu!!!

JMTeles da Silva disse...

Marquei-te falta.

Nilson Barcelli disse...

Os hospitais são isso mesmo que tu muito bem descreves.
Beijinhos

Misty disse...

Arrepiei-me ao ler estas linhas. Palavra de honra que senti até o cheiro...tive algumas passagens por hospitais, mas comigo, felizmente, quase sempre,foi algo diferente. Porque tive oportunidade de "reclamar", de berrar e dizer-lhe que não me chamo "esta aqui", que sou uma pessoa e não o número do processo escrito no tag que tinha no pulso! Correu tudo melhor depois disso...
Mas a indiferença e a intolerância são duas amigas que caminham frequente/ de braço dado nos hospitais ...
Fica bem.

Unknown disse...

Olá vim cá pela primeira vez e confesso que adorei li-te e fiquei fascinada. Beijinhos amiga

Anónimo disse...

Quero ler mais!
Toca a "trabalhar":)

Unknown disse...

gosto do cheiro do eter, fará mal eu gostar desse cheiro quando me limpam as crostas das feridas.
quando me tiram os pontos, posso parecer louco, mas ...gosto. efectivamente gosto de aparencias.. acho que estou a ficar louco.. Psttt eu escrevo com vontade, acredita que sim.

Anónimo disse...

Excelente, Raquel. De arrepiar.
De arrepiar, também o que 'lá' deixei para ti.
//(~_~)\\ um beijo da Titas

bertus disse...

...se continuas por "aí" estou a ver que te tenho de levar umas flores. A que horas são as visitas?

Óptimo fim de semana!!

Anónimo disse...

Do jardim da Adrica voei até aqui e aqui me calo diante da magnitude de sua dissersiva. Sem palavras mas com a alma triste ao lembrar as mesmas cenas em outro hospital, quando de vigilia à minha mãezinha querida.
Deixo um beijo e minha solidariedade.
Uma borbolet@ @zul por aqui poisou.

Raquel Vasconcelos disse...

At 7/7/05 19:40, Anonymous said
Quero ler mais!
Toca a "trabalhar":)


Mas quem é o malvado/a que gosta de me ver trabalhar à borla!? Eu sei q tenho essa mania... Mas ainda faço greve se não se identificar e já! Sim! Que é p eu a/o mandar 'trabalhar' também, que estamos numa democracia hehhehe

Anónimo disse...

ok.
carlos,1-4-62,Porto
"anonimo"
Fim da greve?
:)

Raquel Vasconcelos disse...

:/ Mas tu tens carlos no nome? Hum... Ou tira-se a parte do primeiro de abril e sobra só o resto? POis... 'trabalhar', estou a pensar, ok? :P

anónimo disse...

ok.
carlos

Wakewinha disse...

De facto as urgências urgem a mudança! Não sei bem porquê, mas arrepiei enquanto te lia!
Beijinhos homónimos*