março 16, 2004

Vejo-te ainda...

Vejo-te ainda, em cada objecto que foi teu, e teima em permanecer nesta casa. Vejo-te nas sombras. Vejo-te no branco turvo do olhar dos outros, nessa saudade que torna todos os seres intemporais.

Observava-te tantas vezes calada. Preferia que não reparasses em mim. Escolhia, sem dúvida, não te encarar. Cresci sem ti, nunca te apercebeste disso. Não saberia que dizer-te. Ainda hoje, recuso olhares que descansam no meu. Sinto-me gelar, torno-me irracional, perco-me entre medos que não sei nomear.

Teria sido tudo mais simples se tivesse dito a tempo que te amava. Mas era tão infantil que me contentava em coleccionar fugas. E naquela manhã voltei a tentar fazê-lo. Tinha à minha frente um copo de leite e um croissant misto. Tu? Bebias café? Não me recordo. Respondia tentando centrar-me num texto bem delimitado. Mas driblaste-me e acabámos por falar de morte. E falar da morte de outros pareceu-me uma boa maneira, de mais uma vez não, não te enfrentar. Deixei-te seguir por aí.

Em poucas frases, acabaste por colar a essa morte, a tua infância. O enquadramento tornou-se esse, a tua infância. Também tu, claro, tinhas os teus medos. Provavelmente não como os meus, sempre me pareceste muito mais temerário do que eu alguma vez fui ou terei coragem de ser. Imaginei-te a correr pelo pó da estrada, atrás do homem das cantigas, tal como descrevias. Recriei a cena, como se olhasse para uma polaroid desbotada, amarelada.

Sabia que te sentias bem estando vivo. Embora tivesses a percepção de que a morte dançava perto de ti, por entre as cortinas de um imaginário salão de baile, onde te encontravas e de onde não te deixavam sair. E se eu fosse, nessa época, apenas um pouco menos infantil, teria percebido o quanto te negaras, de todas as formas, a aceitar o convite, o quanto a vida te fascinava.

Observei-te, já imóvel, ainda nessa tarde, e assim ficaste. Transformei esse dia numa série de outras tantas polaroids. Ainda me recuso a aceitar esse pó em que te tornaste. Ainda me recuso a aceitar o vazio súbito, a impossibilidade de emendar o passado ou vencer o futuro. Vivo no presente, mas à tua procura. A vida tem-me dado tempo para tentar entender, mas ainda vejo os teus olhos nos olhos dos outros, e continuo a fugir. E sei que nas minhas fugas constantes, cometo os mesmos erros com outros, transformando-os em fantasmas, antes do tempo, como fiz contigo.

Observo a prateleira onde te encontras, na velha estante. O gato cinza dos bigodes longos, que ocupa agora a casa, contorna-te cuidadosamente. Pára e fita-me silenciosamente.

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