abril 11, 2008

Olhar de Outono...


A morte saiu e entrou pela porta da rua em forma de móveis que iam e vinham conforme o espaço na camioneta das mudanças assim o permitia.
No chão da entrada do prédio viam-se folhas de um Outono que tardava, pegadas sujas de terra e um laço de embrulho, vermelho e pisado. A chuva nascia e depois escorria pelos canos a descoberto na rua, e os homens das mudanças iam e vinham naquele final de tarde enquanto a escuridão ia ganhando terreno.
O frigorífico e o microondas desceram no elevador e ao encará-los, achei que eram modernos demais para que a morte os tivesse invadido. Como se apenas mobílias velhas e quadros antigos emoldurassem com lógica finais sem história nem encanto em camas de hospital.
E sobre o ser humano que vivera a dois andares de mim durante quase trinta anos e que eu tão mal conhecera? A sua imagem persistirá colada ao sorriso que por vezes me dirigia. Boa tarde, está tudo bem? Sim, sim, e consigo? Boa tarde. As mesmas frases repetidas vezes sem conta no mesmo teatro humano de sempre.
E reflicto, da última vez que a vira realmente parecia mais frágil, com mais rugas, mais escondida na roupa… Nos últimos dez anos fora a primeira vez que voltara a olhar a para ela a sério…

Sinto frio. Abro e fecho a minha mão entorpecida como se reparasse nela só agora. Enquanto os homens das mudanças levavam para uma camioneta os resquício de existência daquela mulher, o Outono e a ventania mostraram a sua face definitivamente.

9 comentários:

Nilson Barcelli disse...

Tal como tu, também fui participante do 1º jogo das 12 palavras do Eremita.

Depois de ler o teu texto, resolvi dar aqui um saltinho para te dizer que gostei (é excepcionalmente bom, mas tu não sabes fazer pior...).

Bfs, beijinhos.

PortoCroft disse...

Bonito, Raquel. Continua.

Beijos.

Paulo Tomás Neves disse...

são inúmeras as vidas que nos passam ao lado, tal como passamos pelas folhas caídas d'outono

LeniB disse...

Parabéns pelo seu texto. Faz-nos reflectir o quão breve é a nossa existência e o pouco valor que lhe damos.

Texto-Al disse...

mt original o texto, raquel:)

Tiago

Parvinha da Silva disse...

faço minhas as palavras do Nilson; gostei do teu texto em jogo; e o que escreveste hoje é excelente.

Não é novidade para ti, mas excelência é o mínimo que me ocorre sempre que te leio.

Um beijo

Å®t Øf £övë disse...

No words... just a kiss...

Eremit@ disse...

texto sensivel - costumam sê-lo - que fala da indifernça entre nós nas cidades, nos mesmos prédios, vizinhas de porta a porta, encontros fortuítos nas escdas, elevadores, na entrada...Mas sempre uma indifernça e distãncia perante outro a dominar. E fazes tudo isto numa abordagem diferente articulando com o tempo - creio que esta figura de estilo se denomina metonímia.
fraterno abraço

Anónimo disse...

Bonito