Sabes o que te digo?
Ninguém deita o passado fora sem olhar para o caixote do lixo mil vezes antes de se decidir, particularmente as pessoas que abominam deitar fora seja o que for - a camisola velha e larga vai sempre dar jeito e as calças às flores talvez voltem a estar na moda.
Sentimo-nos vencidos quando abandonamos algo na viagem, seja qual for a razão. Nas amizades que esmorecem - tal como com os casamentos que morrem - as culpas são postas na mesa como se fossem baralhos de cartas.
A culpa... Como se nisto de viver fosse sempre sumário apurar culpas atirando-as depois para um canto, para as esclarecer mais tarde. Talvez absolvendo-nos, talvez carregando com elas eternamente. A culpa é um substantivo e um substantivo é seguramente concreto, palpável, o que nos afasta do fosso do abstracto, muito mais intimidante.
Não há saídas. Pedir desculpa? Pedir desculpa é solicitar ausência de culpa e não desejamos fazê-lo porque ao substantivarmos a culpa não restou determinação para mais nada.
Fechámos tampas imaginárias de caixas imaginárias e encerrámos lá os assuntos incómodos. Arquivámos amizades com julgamentos pendentes.
E como em tudo que é imaginário, as caixas pairam num limbo de pó e esquecimento onde nada tem resolução e as amizades de longa data, ilusoriamente sólidas, mantêm-se estagnadas. O tempo desfaz-se em dias que decorrem e a culpa não se decifrou ou perdeu contornos.
Passa um ano, passam três, passa uma década. Por vezes olhamos para aquela rua, prédio ou café e estão lá encerradas cenas que se mantêm presas a nós, engastadas em neurónios que momentaneamente faíscam, colidem e fazem o estômago apertar-se imperceptivelmente. E aí mais uma vez a fuga: culpa, alguém teve culpa. E o estômago descontrai-se e a dor dilui-se pelos outros órgãos, aparentando diminuir.
Mas existem breves instantes em que nos deixamos levar pela nostalgia, esquecemos quem terá feito o quê e aperfeiçoamos essas mesmas cenas até ficarem nítidas. Natais, Páscoas, Carnavais, férias, aniversários, casamentos, nascimentos. Muitas horas somadas às nossas vidas que se esboçaram e concretizaram em comum. Risos, palavras soltas, conversas longas ou confissões, divergências, opiniões e emoções que explodiam sem hora marcada? Que a nossa retina fotografou e todos os outros sentidos assimilaram e guardaram.
Por isso, sabes o que te digo? Acho que estou para aqui a divagar. A vida ainda vai a meio e eu até detesto culpas, mesmo que sejam substantivos fáceis de arquivar. Vou vestir um casaco e dar aí um pulinho.
Por Raquel Vasconcelos
in Jornal O Progresso de Gondomar
Ninguém deita o passado fora sem olhar para o caixote do lixo mil vezes antes de se decidir, particularmente as pessoas que abominam deitar fora seja o que for - a camisola velha e larga vai sempre dar jeito e as calças às flores talvez voltem a estar na moda.
Sentimo-nos vencidos quando abandonamos algo na viagem, seja qual for a razão. Nas amizades que esmorecem - tal como com os casamentos que morrem - as culpas são postas na mesa como se fossem baralhos de cartas.
A culpa... Como se nisto de viver fosse sempre sumário apurar culpas atirando-as depois para um canto, para as esclarecer mais tarde. Talvez absolvendo-nos, talvez carregando com elas eternamente. A culpa é um substantivo e um substantivo é seguramente concreto, palpável, o que nos afasta do fosso do abstracto, muito mais intimidante.
Não há saídas. Pedir desculpa? Pedir desculpa é solicitar ausência de culpa e não desejamos fazê-lo porque ao substantivarmos a culpa não restou determinação para mais nada.
Fechámos tampas imaginárias de caixas imaginárias e encerrámos lá os assuntos incómodos. Arquivámos amizades com julgamentos pendentes.
E como em tudo que é imaginário, as caixas pairam num limbo de pó e esquecimento onde nada tem resolução e as amizades de longa data, ilusoriamente sólidas, mantêm-se estagnadas. O tempo desfaz-se em dias que decorrem e a culpa não se decifrou ou perdeu contornos.
Passa um ano, passam três, passa uma década. Por vezes olhamos para aquela rua, prédio ou café e estão lá encerradas cenas que se mantêm presas a nós, engastadas em neurónios que momentaneamente faíscam, colidem e fazem o estômago apertar-se imperceptivelmente. E aí mais uma vez a fuga: culpa, alguém teve culpa. E o estômago descontrai-se e a dor dilui-se pelos outros órgãos, aparentando diminuir.
Mas existem breves instantes em que nos deixamos levar pela nostalgia, esquecemos quem terá feito o quê e aperfeiçoamos essas mesmas cenas até ficarem nítidas. Natais, Páscoas, Carnavais, férias, aniversários, casamentos, nascimentos. Muitas horas somadas às nossas vidas que se esboçaram e concretizaram em comum. Risos, palavras soltas, conversas longas ou confissões, divergências, opiniões e emoções que explodiam sem hora marcada? Que a nossa retina fotografou e todos os outros sentidos assimilaram e guardaram.
Por isso, sabes o que te digo? Acho que estou para aqui a divagar. A vida ainda vai a meio e eu até detesto culpas, mesmo que sejam substantivos fáceis de arquivar. Vou vestir um casaco e dar aí um pulinho.
Por Raquel Vasconcelos
in Jornal O Progresso de Gondomar
13 comentários:
Do teu belo texto, podemos tirar uma conclusão rapida ...
Tudo isso é sinal que estamos vivos e desejamos viver e suplantar os acidentes inconvenientes que nos deparamos nesta vida ...
Não podemos jogar fora o Passado ...
Tal como não podemos esquecer o Presente ...
Nem sacrificar o nosso Futuro!
"Vive, amando!
Ma, vivendo!
Um dia Feliz...
Bjks da Matilde e do Miguel
Uma abordagem clara sem subterfúgios;
Como sempre,gostei muito!
bjokas e um bom dia ":o)
Ok. Vou esperar-te. ;)
E como sempre, disseste muito bem. Registo as tuas palavras em tantas páginas, mesmo que sejam divagações, as conclusões podem ser óbvias daquilo que muito se sente. E o sentir é a prova de que o passado valeu a pena, porque ele jamais se repetirá... Insiste-se em contornar as nossas vidas, afim de lhe dar o significado que se ambiciona.
Dá um pulinho pela minha casa então, mesmo sem vestires o casaco porque lá não está frio?
Beijos, boa semana
eu deveria sair... e.... e....
...e....e
Querida Ana
Sem culpa, deixando o passado na memória e olhando de novo o mundo, contendo a angústia com um sorriso determinado.
Um beijo
Daniel
Muito verdadeiro este teu texto!
Passa um excelente fim de semana e, se puderes, sorri!
A vida. A nossa vida está sempre no princípio. A um mero instante de acabar.
Num relance, após um sorriso cheio de sol no olhar, fecha-se a última página do livro. Todas as histórias de vida ficam por terminar. Lemos, uma após outra até nos darmos conta que um capítulo fica a meio duma frase. Sem um epílogo assim de repente acaba, episódio a meio dum sorvo de futuro. Vivemos todos a ilusão secreta da eternidade. Mas o presente já era e é ele que nos leva na direcção do incerto previsível. Desculpa Vida, não te posso levar comigo para sempre....
Olá, passei para te desejar um bom domingo, mas...deparei-me com um texto tão envolvente, tão verdadeiro, que aqui me quedei e fiquei presa à leitura do mesmo.
Como escreves bem...Parabéns!
Logo a 1ª frase me prendeu à leitura: Ninguém deita o passado fora sem olhar para o caixote do lixo, mil vezes antes de se decidir...como é verdade!
Eu sou mesmo assim em relação a tudo, sejam roupas, calçado, papéis, revistas, sei lá que mais!
Beijokinhas.
Raquel
Uma gondomarense...ai se o Valentim descobre...tás feita ao bife.
Feito ao bife tou eu com os códigos que vcs metem nisto...lá vou eu á pesca das letrinhas.
Bjs
bjs minha crida.
Uma flor por este excelente artigo e um bjinho pelo mail de tão nobre causa(já coloquei nos dois blogs, mas primeiro que acertasse!!!!Por isso é que ainda não actualizei os links (lol)).
Bjokas linda que tão bem escreves
O que acontece é fruto de comportamentos inerentes à personalidade de cada indivíduo. Há personalidades compatíveis outras nem tanto...
E assim "O tempo desfaz-se em dias que decorrem sem culpas, pois é impossível decifrar os contornos"...
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