outubro 19, 2006

"Sempre se refugiou em analogias para assimilar o traçado invisível da vida - como em criança entendeu, através dos infinitos numéricos, que o seu querido céu de brilhos vários também não tinha fim."



Analogias virtuais...

Sente-se só. De pé, entre as paredes pontilhadas de fragmentos de vida - fotografias, recortes de revista, post-its e maquetas - repara no piscar das minúsculas luzes do modem que lhe mostram que este iniciou o seu mutismo. Não poderá durante demasiado tempo, sabe, caminhar pelo corredor - é assim que ela imagina o mundo virtual, um corredor por onde todos se passeiam, falando-se ou não, numa multidão de vozes quase sempre sem som e tantas vezes anónimas, ou quem sabe, fazer apenas fazer uma pesquisa, espreitar um blog, uma notícia...

Sente medo. Observa o velho Mac - um computador que a que o tempo roubou pressas mas que ainda ostenta orgulhosamente o logo colorido da maçã - mantém-se silencioso. Acorda-o com um toque suave no rato. Não quer ficar sozinha... Por toda a casa encontrou vestígios recentes de vazio. Um livro, um cinzeiro ou uma moldura que deixou o seu traçado no pó fino que permanece nos móveis. Cada objecto transformou-se numa peça de partilha, parte de um puzzle que nunca irá completar. Achava-se mais forte, mas o medo surgiu mascarado de noite e de sombras. Já não pode refugiar-se no corredor virtual.

Pára no tempo. Leu em criança demasiados contos de fadas, e já adulta, coleccionou do mundo real apenas o que lhe interessou. Recusou-se a catalogar o cinzento do mundo e remeteu-o desordenadamente para caixas de cartão, que mantém num sótão reservado para o que considera proibido. E um dia, abruptamente, começou também a riscar o futuro - um futuro imaginado, que em tempos se entretinha a desenhar delicadamente, como se estivesse na primeira classe a treinar o alfabeto - riscou-o com violência, até rasgar a folha. Mas riscou-o já demasiado autêntico.

Fixa o ecrã. Na vida não se fazem rascunhos, não há "maça, z", nem "control, z". Não se fazem updates à felicidade ou desfragmentações ao sofrimento. Hipnotizada pelos pensamentos, projecta mentalmente circunferências, vectores sem alma ou defeito que refaz na perfeição, como se fosse possível a perfeição se imitada por uma máquina. É fácil gerir a nossa mente perante um documento em branco, que em nada nos questiona. Esse vazio de cada novo documento parece despertar-nos a capacidade de recomeçar. Alguns toques no teclado e no ecrã os círculos adquirem, aleatoriamente, tonalidades e transparências suaves.

Relembra. Há um ano atrás, o primeiro disco rígido do computador morreu. Alguns gigas de tudo e de nada desapareceram. Durante dias catalogou o que se encontrava preso no interior da peça fria e inacessível de hardware, cada fragmento de informação que nunca mais seria imagem, som ou vector. Perante a inevitável perda de toda a informação, refez os trabalhos a decorrer à data do incidente e arquivou os restantes - aqueles que mais sorrisos tinham feito surgir - na área que o cérebro dedica ao não esquecimento.

Sorri. Sempre se refugiou em analogias para assimilar o traçado invisível da vida - como em criança entendeu, através dos infinitos numéricos, que o seu querido céu de brilhos vários também não tinha fim. É agora uma máquina - um aglomerado de plásticos e hardware sem vida - que a ensina. O passado permanece, nunca desaparece no vazio. Transforma-se em fragmentos de memória.

Respira fundo. Retira finalmente todas as ligações ao modem.

19 comentários:

Daniel Aladiah disse...

Querida Ana
Ligado... leio a corrente que aqui passou... luzindo... deixo um beijo
Daniel

A.Mello-Alter disse...

Um beijo para quem esqueceu os amigos.
Saúde, fofa

gato_escaldado disse...

um beijo...

Alex disse...

Incrível Raquel.
Bom texto! É como se te tivesse a ouvir falar ... escorre-me, soa bem. Faz sentido, enquadro-me.



E eu, lembro-me muito bem de ti :-)
(ex "palavras-dispesas"

Beijo

agua_quente disse...

Tinha saudades de te ler. Ainda não tinha lido este texto que, como sempre, me encantou.
Beijo, Raquel.

Andy More disse...

Já fazia algum tempo que não entrava aqui, não por esquecimento mas porque estava tudo sempre igual. Hoje, entrei devagarinho, espreitei e surpreendido devorei as tuas palavras que sempre me encantaram... És soberba na imaginação das palavras que se arriscam a escapar odores entre tantas suaves cores, algumas já gastas pelo tempo. Mas a paisagem, mesmo que desfocada continua lá, intocável, como o teu coração.

Um beijo meu, minha amiga mesmo sendo virtual!

folhasdemim disse...

Gostei muito.
Beijos, Betty

Afrodite disse...

Um texto sublime, Raquel.
Surpreendes-me sempre.
Tenho um orgulho em ti do tamanho do mundo.

Por isso e por tudo o mais, te amo também, minha fióta.

Mitsou disse...

Venho pelo aceno da Titas e encontro-te com mais um texto surpreendente. A todos os níveis, maninha. E tu sabes do que falo.
Emocionada ainda, mas feliz por saber-te AQUI, deixo o meu beijinho doce e um sorriso cheio de ternura e admiração pela força que nos mostras.

Amita disse...

Olá Raquel
Que fazes falta neste "corredor" virtual já te tinha dito. A tua escrita tem um toque especial e este texto de lembranças é magnífico - urge o teu regresso.
Um bjinho grande e um fim-de-semana lindo

Menina Marota disse...

De uma sensibilidade tocante, este texto vai ao fundo da alma...

Um abraço ;)

Lord of Erewhon disse...

Muito William Gibson... Gostei.

Dark kiss.

Anónimo disse...

Hum... interesting... ;P
Stay super... and enjoy the life!

Conceição Paulino disse...

olá menina :)
não dizes nada e eu ausente ando, mas hoje vim, pé-ante-pé e descobri uma nova postagem.
um belo texto em k descubro algumas analogias, nem sei se alegorias tmb, + preocupantes. Todos os corredores são bosn. É preciso é andar. E o futuro não hácomo riscá-lo. Riscamo-nos só a nós. Ou seja: ferimo-nos.
Bjs. Luz e paz ao teu redor.
E vola a ligar todos os fios, todas as teias entre si.

Thiago Forrest Gump disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Thiago Forrest Gump disse...

Quanto tempo não venho aqui!

E que não posta?!

Espero que estejas bem por aí! Não pára! :D



Bom fim de semana, Raquel!

Daniel Aladiah disse...

Por onde andas, Ana?
Saudade...
Um beijo
Daniel

Páginas Soltas disse...

Raquel...minha querida...estamos todos á tua espera..para nos encantares com as tuas belas palavras!

Sou fã nº 1 de ti!

Vá...minha amiga...
Recorda que dei os primeiros passos neste mundo de blogueiros pela tua mão!

Tenho saudades de ti!

Se fores ao meu Blog...recordas de imediato quem sou :)

Beijinhos minha querida...
da Maria

Conceição Bernardino disse...

CONVITE


Meus queridos amigos,
Queria-vos convidar a todos para o lançamento do meu primeiro livro de poesia, que se realizará no dia 6 de Abril às 22h30 (Sexta ? feira Santa), no Blá,Blá em Matosinhos na rua Brito Capelo nº 1085.
Gostaria muito de ter o vosso apoio e presença pois nem sabem o quanto este momento é importante para mim e a vossa companhia me trará mais força.
Gostaria de quem pudesse ir pois tenho os devidos convites e gostaria de saber quem vai estar presente para entregar o convite pessoalmente.
Muito obrigada a todos.
Apareçam será um prazer conhecer-vos.
Beijinhos
Conceição Bernardino
Aqui fica o meu correio electrónico para quem quiser dar a resposta pessoalmente
conceicao.mami@sapo.pt