junho 27, 2006

Caixotes e caixotes por decifrar...

O conjunto de chá da loja do Gato Preto talvez esteja em cacos... Não os tachos, que são inquebráveis e nem uma amolgadela lhes embaraça o brilho do aço - pensei que os querias mas sei que os deixaste.
Livros por reler... Memórias enfiadas à pressa entre esferovite e pedaços de jornal para acordarem intactas quando o x-acto, os olhos, as mãos e a coragem desselassem tudo...

O cheiro do mar persegue-me a cada caixote que quero abrir, como incenso que se incendeia sem permissão. Deixei o pó acumular-se. O perfume do mar está presente em todas as linhas do meu destino e o que seria de mim, a pressenti-lo, presa na teia em que me enredei...
Poderia gritar. Mas não faria sentido desperdiçar palavras no vazio que outrora foi uma multidão, nem em parágrafos violentos que ficariam sem resposta.

Certamente que "nós",
deixámos muito antes
de o ser. Pertenceste
sempre a um conjunto
de factos óbvios.
Barro que o artista usou
para uma obra há muito
delineada, consumada.


Hoje nem sequer te recrimino. Em contrapartida também não o faço comigo mesma. Poderia justificar-me, mas creio que estamos em pé de igualdade. Apenas te foi mais fácil censurar a minha desistência tão evidente. Porque a tua foi gradual e imperceptível... Sem nome nem apelido. Não foi? Sempre conheceste todos os atalhos de cor enquanto eu pairava pelo desconhecido. E como vagueei... Desejo? Não sei... Anseio? É-me indiferente. Mal me quer, bem me quer, mal me quer...

Certamente que "nós", deixámos muito antes de o ser. Pertenceste sempre a um conjunto de factos óbvios. Barro que o artista usou para uma obra há muito delineada, consumada. Parte de um todo, invisível para alguns, é certo, mas apreciado por muitos.

Eu sentia-me só, ínfima... Fragmento desse mesmo barro, escorreguei das mãos do artista e cai com um baque. Um pontapé inesperado obrigou-me a rodopiar pelos ladrilhos argilosos qual pião. A indolência interveio. Quedei-me num canto, entre a poeira dos dias que acontecem, aguardando que o artista reparasse em mim... e me transformasse em cabelos soltos ao vento - esse vento que se desprende do desconhecido - antes que o tempo que fugia me encontrasse já pedra. E o tempo passou...

Sou e sempre fui paciente...


Mas os caixotes têm que ser decifrados! E o artista deverá reparar em mim! Grão de areia nestas páginas ambíguas! Bem me quero...
E grito! Que interessa se aparento estar emudecida! Grito!
E sopra uma brisa e o artista desvenda-me e abro caixotes e já é de manhã e a claridade esbate-se serenamente nos cabelos e no vento que o artista modela.

O oceano aguarda-me...




(imagem Getty Images)

29 comentários:

Daniel Aladiah disse...

Querida Ana
Cada texto teu é uma agradável surpresa. Não pela qualidade da escrita (mulher, escreves muito bem!!!), mas pela história figurada, que adoro como estilo. Sei que um pouco de ti se verte em cada parágrafo e aplaudo a vontade de abrir os caixotes e deixar os cabelos ao vento... tu mereces!
Um beijo
Daniel

Miguel disse...

Raquel,

Não passava por cá há muito tempo!
Por isso, peço-te imensa desculpa!

O teu espaço de leitura continua como sempre!
Impecável!

Bjks da Matilde

O Micróbio II disse...

Agtradável leitura... como sempre nos habituaste! :-)

Carla disse...

Lindo o teu texto, as tuas palavras são eco do sentimento que um dia passou por mim...

Beijos e bom domingo

Thiago Forrest Gump disse...

Texto que transmite vida, revolta e reação.

Gostei!



Beijinho

Foxy disse...

Saio impressionada...beijo

Teresa David disse...

Mais uma vez confirmo a tua qualidade de escrita, num texto que creio bem entender! Para alguma coisa terão servido as nossas conversas. Força sempre, menina, que quem assim escreve merece, além de ser publicada, andar por cá o tempo suficiente para dar deixar uma obra.
Forte abraço
Teresa David

Teresa David disse...

vou pôr o teu blog nas minhas derivações, que meramente por desleixo ainda não o linkei ao meu. Assim ser-me-á mais fácil vir aqui mais assiduamente.
Beijos
Teresa David

Alba disse...

Uma carta arrancada do fundo da alma! Que belíssima catarse partilhaste!

Su disse...

espero.te
adorei ler.te
jocas maradas de tempo (o tempo falta.me e foge.me)

HRC disse...

A tua escreta já não comento, sinto que não preciso, sinto que já sabes o que penso.

Gostei de passar por aqui e ver novidades, espero que seja bom sinal.

João Mãos de Tesoura disse...

Raquel, vou reabrir o Enigma ( www.oenigma.blogspot.com ) e fazer daquilo um livro. Conto com a tua escrita.
Beijos

gato_escaldado disse...

um belo texto. uma rara escrita harmoniosa e autêntica. beijos

folhasdemim disse...

Excelente texto!

Mudei de casa:

http://desfolhada2.blogspot.com/

Beijos,
Betty

Unknown disse...

Parabéns querida menina linda, que o teu dia seja de felicidade. Recebe um grande abraço de parabéns desta tua amiga para sempre.

Nilson Barcelli disse...

Não sabia deste post, que já tem quase um mês...
Estou cansado de te dizer, mas nunca será de mais repeti-lo, que tu escreves bem comó caraças.
Não sei quem é o Caraças, mas deve ser muito bom...
Este texto está ao teu melhor nível. Impecável. Se fosse director de uma revista contratava-te para uma crónica semanal (também já te disse isso em vtempos, creio eu, mas se não o disse foi porque me esqueci).
Escreve mais, sim? Please...
Um beijo amigo para ti.

Unknown disse...

Parabéns Raquel por mais esta primavera :) tudo de bom para ti. Um beijo.

wind disse...

Através da Júlia soube que fazes anos. Muitos parabéns e felicidades:)
beijos

lique disse...

Parabéns, Raquel! Um bichinho disse-me ao ouvido que fazias anos... :) Um beijo grande e o desejo de felicidade na vida.

agua_quente disse...

Beijo nosso, Raquel! Muitos parabéns e felicidades.
Já tinha saudades de te ler... :)

Fata Morgana disse...

Muitos Parabéns, Raquel! Vinha dar-tos (uma vez mais!) pelo Aniversário, mas agora estes ficam também pelo texto.

Beijo.

Dilbert disse...

Olá miguita :)
Tenho andado a "cuscar" para ver se colocavas um Postito alusivo à data festiva... mas deves ter mais que fazer neste dia :)
Aproveito então para colocar aqui mesmo os meus desejos de um dia muito feliz "pra tu" :)
Biliões de jokinhas e xi-corações

Manel do Montado disse...

Na na na, na na na.
Na na na, na na naa
Na na nana na nana,
na nana na na na.
Hoje é dia de festa, na na na almas,
Prá menina Raqueli, na na, d...de palmas.

Desculpa mas estava a comer quqndo me lembrei de dar-te os parabéns.
Precisamente hoje faz 12 anos que regressei a Portugal vindo da Bósnia e també faz 37 que o Neil Armstrong pisou a Lua.
Um beijo Enorrrrrrrrrrme!

Jorge Castro (OrCa) disse...

Fizeste um bolo grande? Ou então aperta nas fatias para chegar a todos...

tem isso de bom o aniversário
de ter o condão de o tempo parar
só p'ra nos dizer ou p'ra nos mostrar
que isto de viver é mais do que um dom
e mesmo em momento de tempo contrário
saber do viver ser algo tão bom...

Muitas felicidades, muitos anos de vida!

Beijos.

Menina Marota disse...

Quis vir mais cedo deixar-te um beijo de aniversário, mas esta ultima trovoada no Porto, deixou-me sem ligação à internet e com o pc avariado. Vim a casa de um familiar para aqui te deixar um grande abraço e perguntar quando voltas... (?)

Que esteja tudo bem contigo e que tenhas tido e continues a ter, um aDia muito Feliz.

Abraço carinhoso ;)

Kalinka disse...

OLÁ MINHA QUERIDA
Quantas saudades...
Cheguei e leio-te, fico arrepiada com o teu texto, mas que fascinio sinto pela tua escrita.
Parabéns pela escrita de sempre e, já agora, fiquei a saber do teu aniversário, embora um pouco atrasada, os meus sinceros Parabéns e votos de dias, meses e anos cheios de Felicidade, pois tu mereces.
Quando tiveres tempo, visita-me, tenho saudades das tuas belas palavras no meu kalinka. Beijokas.

folhasdemim disse...

Excelente!
Beijos, betty

Art&Tal disse...

e pensavas tu que eu nao vinha cá meter o olho. ora viu.

li o texto sim senhora. continuas com uns dedinhos santos.

bom... e porque hoje estou euforico aí vai um abraço apertadinho e doce

c.


pera aí... tu fazes anos? olha as orelhas. eu vou-te dizer safada.

MARCOS LOURES disse...

A alma feminina
Chegara há pouco naquela cidadezinha perdida nas matas das Gerais.
Médico recém formado, dono dos invejáveis vinte e cinco anos de idade; época da vida em que se é rei e não se percebe.
Fora contratado para trabalhar no Programa de Saúde da Família, trabalharia na zona rural, num pequeno distrito longínquo da sede do município.
Nos primeiros dias, a notícia de que havia um jovem doutor se espalhou pela cidade, alvoroçando o coração da moças casadoiras e namoradeiras do lugar.
Extasiado com tanto assédio, começou a ter o prazer de ser bajulado e cortejado por todos na pequena cidade.
Feio não era, até pelo contrário, mas era tímido. Muito tímido por sinal.
E isso o impedira de ter tido as experiências com o sexo oposto comuns à sua idade e a ?posição social? que atingira, de repente.
Família pobre, estudando com todas as dificuldades que são lugares comuns nesse país das injustiças, conseguira se formar com muito sacrifício de todos, inclusive dele.
No Rio de Janeiro, enquanto seus colegas saíam à noite, nas baladas cariocas, ele ficava em casa estudando ou dando plantões e mais plantões para ajudar a pagar a faculdade.
Mulheres? Não as teve, exceto uma ou outra namorada que, ao perceberem que o namoro se resumiria a um cinema no final da tarde ou um refrigerante na porta da faculdade, rapidamente iam ?cantar em outra freguesia?.
Uma das coisas que o médico do Programa de Saúde da Família tem que fazer são as visitas domiciliares.
Normalmente, na zona rural, a realidade é muito diversa da que estão acostumados os urbanos doutores.
A simplicidade e a pobreza são lugar comum; mas a recepção com um cafezinho ou com a fruta da época são freqüentes. Café com guarapa, como é conhecido o caldo de cana nesses grotões.
Um bolo de fubá aparece, não se sabe como e é degustado com prazer verdadeiro e risonho.
Naquela região não era diferente, o que passou a dar ao nosso doutorzinho, uma nova dimensão de felicidade.
Numa das casas, morava uma senhora viúva com seus quatro filhos, dois meninos e duas meninas.
Maria Inês e Maria da Glória, duas meninas típicas da roça.
A mais velha, Maria Inês, com seus dezoito anos era mais tímida, escondida sobre uma mão que ocultava os dentes precocementes estragados e o sorriso doce da ingenuidade.
Mas quem chamava a atenção era Glorinha, menina ainda com seus catorze anos mal completados.
A primeira vez que a vira, reparara que ela não o olhava, sempre olhando para baixo.
A roupa de chita rasgada, mal ocultava os seios recém nascidos e rijos, seios que chamaram a sua atenção...
Os pés descalços, cheios de ?bichos de pé?, diagnosticados como tungíase pelo doutor, os cabelos sujos e desalinhados contrastavam com os seios, belos seios emergindo por entre os rasgões do vestido.
Terminada a visita, o doutor retornou ao seu trabalho e à sua casa.
Nem mais se recordava da menina nem dos seios quando, um mês depois, foi comunicado de que iria retornar àquela casa.
Tudo como antes, tudo, as mesmas deficiências de vitaminas, a mesma miséria, a mesma ausência de tudo, o mesmo chão de terra batida, com os mesmos colchões e os mesmos cães dividindo o espaço com os habitantes da casa.
A única diferença que repara foi na mochila escolar esfarrapada que, a menina, enrubescida, usava por sobre o ombro direito...
Mal sabia ele que esse era o único enfeite que ela dispunha...